
Aurelino de Araújo Leal (1877–1924): O jurista que acreditava na República como um ato moral
O jurista que acreditava na República como um ato moral
Aurelino de Araújo Leal nasceu em 4 de agosto de 1877, na vila de Rio das Contas, na antiga Capitania da Bahia. Era filho de Maximiano de Araújo Leal, coronel e fazendeiro, e de Joana de Freitas Leal, mulher de palavra firme e costumes severos. Desde cedo, o menino mostrou curiosidade pelo mundo das letras e pela ordem das coisas — talvez um prenúncio do jurista meticuloso e do homem público de convicções rígidas que se tornaria.
Fez os primeiros estudos em Canavieiras, numa escola pública simples, mas foi em Salvador, para onde se mudou ainda jovem, que sua vocação floresceu. Na capital baiana, formou-se em Direito pela Faculdade da Bahia em 1894, ingressando de imediato no serviço público como promotor da comarca de Amargosa. A carreira jurídica, porém, não o afastou do jornalismo — paixão paralela em que encontrou espaço para o pensamento crítico e o debate político. Em 1899, fundou e dirigiu o jornal A Lide, que se tornaria voz inquieta e republicana no interior da Bahia.
Ainda em em 1899 disputou pela primeira vez um cargo eletivo, sendo sufragado deputado estadual. Entretanto, em virtude de questões políticas, não foi reconhecido. Somente com a eleição de Severino Vieira para o governo da Bahia (1900-1904) pôde assumir seu mandato. Aureliano exercia rara combinação de cultura, oratória e senso de justiça. Em pouco tempo, ganhou respeito como administrador. Foi diretor da Penitenciária de Salvador, chefe de polícia e secretário-geral do estado, sempre defendendo a moralidade pública e o fortalecimento das instituições republicanas.
Em 1907, cansado dos embates políticos e das intrigas que cercavam o poder, afastou-se dos cargos e retornou à advocacia. Cinco anos depois, mudou-se para o Rio de Janeiro, capital da República, onde mergulhou de vez na vida intelectual. Na metrópole, advogou, escreveu, lecionou e publicou, em 1914, a obra que o consagraria: História Constitucional do Brasil, um estudo denso e elegante sobre a formação política e jurídica do país.
A mesma erudição que lhe abriu as portas da academia o levou aos altos postos da República. Ainda em 1914, foi nomeado chefe de polícia do Distrito Federal pelo presidente Venceslau Brás — função que exerceu até 1918. Era um homem de princípios rígidos e, ao mesmo tempo, de humanidade. Um cronista da época narra que Aurelino, antes de ordenar batidas contra os jogos de azar, costumava avisar por telefone os envolvidos, gesto que teria inspirado o famoso samba “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida — o primeiro samba registrado oficialmente no Brasil, em 1916.
Conta-se que as rodas de samba da casa de Tia Ciata, no bairro carioca da Saúde, onde músicos, operários e boêmios se reuniam, viviam às voltas com a repressão policial. As ordens de Aurelino, avisando por telefone antes das batidas, tornaram-se motivo de riso e alívio entre os frequentadores. Dali nasceu o verso espirituoso que celebrava a malícia e a esperteza popular:
“O chefe da folia pelo telefone / manda avisar / que com alegria / não se questione pra se brincar.”
O samba, nascido da astúcia e da ironia, atravessou o tempo como testemunho de uma época em que o poder e o povo se enfrentavam também no terreno da música — e em que o chefe de polícia, sem querer, ajudou a inaugurar um dos símbolos da cultura brasileira.
Entre 1918 e 1923, foi representante do Ministério Público e, depois, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). Ao mesmo tempo, lecionou Direito Constitucional na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, tornando-se mais tarde catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Sua aula era descrita pelos alunos como uma cerimônia cívica — em cada tema jurídico, ele via a expressão moral da República e o dever de educar cidadãos, não apenas bacharéis.
Em 1923, a crise política no estado do Rio de Janeiro — dividido por duas assembleias e dois governadores — levou o presidente Artur Bernardes a nomeá-lo interventor federal. Aurelino assumiu a missão com energia e equilíbrio, pacificando o estado e reorganizando as instituições. Deixou o cargo em dezembro do mesmo ano, com o respeito dos adversários e o reconhecimento público pela serenidade de sua administração.
Eleito deputado federal pela Bahia em 1924, não chegou a tomar posse. Morreu no Rio de Janeiro, em 8 de junho de 1924, aos 46 anos, encerrando uma trajetória breve, mas luminosa, marcada por retidão e amor à coisa pública.
Aurelino Leal foi membro da Ordem dos Advogados Brasileiros, da Sociedade Brasileira de Direito Internacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Dirigiu o Diário de Notícias, fundou a revista Brasil Econômico e Financeiro e deixou, além de livros e artigos, a lembrança de um homem que acreditava que o Estado deveria ser expressão da moral coletiva.
Casado com Maria Amélia Bittencourt Leal, deixou descendentes e uma reputação de integridade rara.
A cidade que leva seu nome
Décadas após sua morte, o nome de Aurelino Leal ultrapassou os livros e as instituições. No sul da Bahia, um município inteiro foi batizado em sua homenagem — Aurelino Leal, situado às margens do rio que desce da serra em direção a Itacaré.
A história do lugar remonta ao século XVIII. Em 1755, o governador e capitão-general Manuel da Cunha Menezes firmou um acordo com o fazendeiro João Gonçalves da Costa, proprietário da fazenda Ressaca, para abrir uma estrada que ligasse o interior ao litoral. Nasceu assim a Estrada da Nação, importante eixo econômico da província, responsável por integrar as zonas de produção agrícola ao porto de Ilhéus.
O território pertenceu inicialmente à Capitania de Ilhéus e, depois, ao município de Barra do Rio das Contas, hoje Itacaré. Em 15 de dezembro de 1961, pela Lei estadual nº 1.579, conquistou autonomia administrativa e passou a chamar-se Aurelino Leal, em homenagem ao jurista e homem público baiano. A instalação oficial do município ocorreu em 7 de abril de 1963.
Assim, o nome de Aurelino Leal permanece inscrito não apenas na história do direito brasileiro, mas também na geografia da Bahia — como lembrança viva de um homem que acreditou que justiça e moral eram as colunas invisíveis de uma nação.
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Josias Gomes Deputado Federal do PT/Bahia
Vice-líder do PT na Câmara
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