Quando o Nordeste Canta, o Coração da Gente Viaja
Tudo começou com um desejo simples, desses que chegam sem pedir licença e já vão abrindo as janelas da memória e da saudade: assistir à gravação do DVD ao vivo de Flávio Leandro, em São José do Egito, a capital brasileira da poesia, no coração do Pajeú. O nosso destino final era o dia 22 de novembro, o dia da gravação. Mas a vontade de ouvir o poeta era apenas a primeira sanfona a ser aberta nessa história.
O passo seguinte veio quase sozinho: juntar alguns amigos, desses que topam estrada, poeira, bode assado, frevo, forró e conversa fiada. Três casais embarcaram com entusiasmo — Vítor e Olivia, Marsal e Kelly, Ricardo e Cláudia — e eu e Cecília, claro, que não perde uma chance de transformar viagem em descoberta.

E foi assim que resolvemos fazer não apenas um deslocamento, mas um roteiro afetivo pelo interior do Nordeste, esse território onde a música não toca: ela brota da terra. Percorremos com paradas, 10 municípios e acumulamos 2.600 km de chão. Mas foi danado de bom.
Caruaru: onde o barro canta e o São João acende o mundo
Saímos de Salvador na quarta-feira, 19 de novembro, com Caruaru como primeira parada. Ainda que tenhamos chegado já à noite, não me furtei de apresentar aos companheiros a grandeza daquela cidade que guarda a alma das festas juninas, o colorido das bandeirolas, o cheiro de milho assado, o som das quadrilhas e o talento do maior ceramista que o Brasil já viu: Mestre Vitalino. Mostrei com palavras o Alto do Moura, suas casinhas de porta aberta, onde cada peça de barro encerra um pedaço da vida sertaneja. Caruaru é assim: mesmo sem visitar, a cidade se deixa contar.

Bezerros, Gravatá e Amaraji: pedaços do peito
Em Bezerros, paramos apenas para uma foto — não qualquer foto, mas aquela feita especialmente para provocar ciúme em Deoclécio do Ferreiro, filho ilustre da terra. Rimos como quem joga conversa na calçada de tarde quente.
A noite já tinha abraçado Gravatá quando passamos, mas a beleza da cidade encantou Olivia de imediato. “Quero voltar”, ela disse. E quem passa por Gravatá sem querer voltar?
Amaraji, porém, era parada obrigatória. Torrão bendito onde nasci, onde cada rua me chama pelo nome. Abracei Betânia e Mano do Galo, amigos de infância, e trocamos cachaças como quem troca afetos antigos: dei-lhes baianas; recebi uma Pitú das antigas e, como relíquia, uma Aratanha. Ali o tempo nunca passa: se derrama.
Recife: onde o frevo governa

Na capital do frevo, fizemos nosso próprio Carnaval particular. Andamos pelo Recife Antigo, vimos a rua do Bom Pastor, a sinagoga Kahal Zur Israel — a mais antiga das Américas — testemunha silenciosa de séculos que respiram ali.
O Museu do Frevo nos ensinou que frevo não é só música: é disciplina, suor, acrobacia, resistência cultural. Fizemos as fotos no Marco Zero, passamos na loja de artesanato e almoçamos no Restaurante Leite, o mais antigo em funcionamento no Brasil, fundado em 1882. No Leite, tradição não é palavra: é prato, é serviço, é atmosfera.

À tarde, visitamos o Instituto Ricardo Brennand, onde castelos, armarias e obras de arte convivem numa elegância quase improvável para os trópicos.

A Vitória que Selou a Restauração Pernambucana. Um roteiro obrigatório para ama as lutas libertárias do Brasil.
A Restauração Pernambucana foi o movimento que expulsou definitivamente os holandeses do Nordeste e devolveu Pernambuco ao domínio português. Seu momento decisivo foram as Batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), travadas nos morros dos Guararapes, próximos ao Recife. Ali, tropas luso-brasileiras, conhecidas como Exército Patriota, derrotaram forças holandesas bem armadas e melhor equipadas.

Essas batalhas ficaram simbolicamente famosas por reunirem, ombro a ombro, representantes das três matrizes da formação brasileira — europeia, africana e indígena — lutando pelo mesmo território. Os nomes que se tornaram emblemáticos:
Representantes das três raças
•Europeu: André Vidal de Negreiros — militar luso-brasileiro, um dos principais líderes da restauração.
•Afro-brasileiro : Henrique Dias — comandante dos soldados negros, herói respeitado por sua disciplina e coragem.
•Indígena: Filipe Camarão — chefe potiguara, conhecedor da mata e da guerra indígena, essencial para vencer os holandeses.

Esses três líderes, junto com o povo mobilizado, consolidaram a vitória que permitiu a retirada definitiva dos holandeses em 1654. Por isso, os Guararapes são lembrados como o “berço do Exército Brasileiro”, simbolizando a união das matrizes étnicas do país. Revistar este cenário, encheu os nossos corações de orgulho e pertencimento. A luta dos nordestinos por liberdade e vida digna vem de longe, e encontra morada em cada um de nós, que não nega a origem e segue este legado de um Brasil dos brasileiros.
João Pessoa e Campina Grande: o sol nasce primeiro e o São João dura para sempre
Na capital paraibana, fomos ao Ponta do Seixas, ponto mais oriental das Américas. É o lugar onde o sol chega primeiro — e onde a brisa carrega uma paz que só o mar daqui sabe ofertar.
Seguimos para Campina Grande, o coração do Maior São João do Mundo. Visitamos o Parque do Povo, palco das grandes noites de arrasta-pé, e o Açude Velho, onde se reflete a história de uma cidade inteira. A noite fechou no restaurante Manoel da Carne de Sol, clássico desde meus tempos de estudante: sabor que o tempo não consegue mudar.

Areia: um retorno no tempo
Antes de seguir viagem para o sertão, fizemos uma parada especial em Areia, na Paraíba — cidade de casario colonial preservado, ruas de pedra e um ar de história que parece repousar nas sacadas das casas.

Foi ali, na velha Escola de Agronomia do Nordeste, que vivi de 1977 a 1981, e voltar àquele campus foi como abrir um livro já muito lido. Entrei no pavilhão central, mostrei ao pessoal a placa com os nomes dos formandos da minha turma, revi o setor de Zootecnia, caminhei pelos antigos alojamentos. Cada espaço guardava um eco das lutas estudantis — inclusive da primeira greve que realizamos em 1978, quando aprendemos que, antes de sermos agrônomos, éramos cidadãos.


Visitamos também a casa onde nasceu Pedro Américo, o pintor paraibano que o mundo conhece pelos grandes quadros históricos, como O Grito do Ipiranga e Batalha do Avaí. Genial, precoce, intelectual do século XIX, Pedro Américo representou o Brasil com pincel, erudição e coragem. Em Areia, sua história parece pulsar ainda nas paredes.

O casario branco e colorido da cidade, com suas portas altas e suas janelas de madeira antiga, parecia nos acompanhar enquanto partíamos — como se dissesse: “Voltem.”

Patos, São José do Egito e o Pajeú que canta
Em Patos, a quentura era tanta que “queimava o juízo de qualquer cristão”, como bem disseram. Mas a cidade nos acolheu como ponto de apoio antes do grande momento: São José do Egito.

Cidade de poetas, onde a fala vira verso, o verso vira cantoria e a cantoria vira identidade. Dedé Monteiro, Bia Marinho e tantos outros guardiões da poesia fizeram do show de Flávio Leandro uma celebração do Pajeú — uma terra em que até o silêncio declama.


Serra do Teixeira, Zé Limeira e o absurdo encantado
No retorno, a Serra do Teixeira abriu-se diante de nós com sua paisagem grandiosa. No Parque Nacional, a caatinga mostra sua força, com serras, mirantes e horizontes que parecem não ter fim.
Passamos no Sítio Tauá, onde nasceu Zé Limeira, o poeta do absurdo, dono de versos impossíveis que reinventaram a cantoria. Ali, o tempo parece rir do real.
Triunfo: cidade alta, alma alta
Em Lagoinha, às margens da estrada entre Flores e Serra Talhada, almoçamos um bode assado digno de poesia. O dono do restaurante Boi na Brasa era uma mistura de artista, contador de histórias e guardião da cultura pernambucana.

Foi ele quem nos avisou que Triunfo estava logo ali. E fomos.
A cidade mais alta de Pernambuco, a 1.200 metros de altitude, nos recebeu com seu clima ameno, seu Cine-Teatro Guarany, seu lago belíssimo, suas ladeiras históricas e seu charme serrano. Todos se apaixonaram — e todos querem voltar.
O São Francisco e o despertar em Glória
Já na Bahia, paramos em Glória para visitar os amigos de longa data, Zé Ronaldo e Edí, que nos acolheram com um banquete de pratos autorais, todos excelentes.
Acordamos com o espetáculo do lago de Moxotó se abrindo diante de nós. Do lado baiano, a imensidão azul; do outro, Alagoas e Pernambuco se miram como velhos conhecidos. Uma pintura viva, moldada pelo vento, pela luz e pela calma.

Quando o Nordeste canta, ninguém fica indiferente
Essa viagem me fez lembrar que a música nordestina — seja frevo, forró, aboio, cantoria, repente, maracatu — não é apenas ritmo.
É a voz do povo que resiste, reinventa e celebra a vida mesmo nos dias secos.

Voltei para casa com a certeza de que viajar pelo Nordeste é como abrir uma sanfona: cada fole puxado revela um mundo, uma lembrança, uma história.

E quando o Nordeste canta, até o coração mais distraído aprende a dançar.
Josias Gomes Deputado Federal do PT/Bahia
Vice-líder do PT na Câmara
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