Caculé: a cidade que herdou o nome de um escravo vaqueiro
Prosseguindo com a série sobre cidades baianas que guardam, na sua identidade, a memória de personalidades marcantes na política, nas artes, na poesia, nas lutas sociais ou nas ciências, hoje vamos conhecer a origem de Caculé. Venha comigo!
O município e o sertão
Caculé é um município brasileiro localizado no estado da Bahia, com pouco mais de 23 mil habitantes, segundo dados do último censo do IBGE, situado a 750 quilômetros a sudoeste de Salvador. Sua economia é predominantemente agrícola. O clima é quente e seco durante o dia, refrescando à noite, quando a temperatura chega a 15 °C. A paisagem é atravessada pelo Rio Antônio, e a cidade está no traçado da Ferrovia Centro-Atlântica, que liga Montes Claros a Salvador, embora a estação ferroviária não esteja em funcionamento.

Mas, antes de estatísticas e infraestrutura, a história de Caculé começa com a vida de um homem escravizado.
A saga de Manoel Caculé
No coração do sertão baiano, a história de Caculé não começa com decretos ou mapas oficiais. Começa com a saga de Manoel Caculé, um escravizado africano que trabalhava como vaqueiro na Fazenda Jacaré, de propriedade de Dona Rosa Prates.

Por volta de 1854, Manoel desapareceu misteriosamente. Dado como morto pela senhora e pelos demais, parecia condenado ao anonimato. Mas, em silêncio e astúcia, ele encontrou não apenas refúgio: descobriu um território que se tornaria símbolo de resistência.
Anos depois, um escravo da própria fazenda revelou o segredo. Manoel vivia em um rancho de taipa, coberto por palmas de ouricuri, erguido com as próprias mãos às margens de uma lagoa de águas abundantes, até então desconhecida pelos donos da terra. Para Manoel, aquela lagoa era mais que abrigo: era a promessa da liberdade.
Da fuga à liberdade conquistada
Enquanto a fazenda acreditava em sua morte, Manoel cultivava a terra, vendia os frutos do seu trabalho e guardava moedas. Quando foi finalmente localizado, surpreendeu a todos: apresentou à sua senhora a proposta de comprar a própria alforria.


O que parecia impossível para um escravizado tornou-se realidade. Com o dinheiro acumulado em anos de resistência silenciosa, Manoel conquistou legalmente a liberdade que já exercia de fato. Dona Rosa Prates aceitou, e o vaqueiro que ousou desaparecer tornou-se um homem livre.
Da lagoa ao topônimo
A lagoa passou a ser referência para tropeiros e viajantes que cruzavam a estrada real entre Minas Gerais e a Bahia. Quando perguntados de onde vinham, respondiam: “da Lagoa do Caculé”. Assim, o nome do ex-escravo, antes apagado pelo cativeiro, transformou-se em topônimo, correndo de boca em boca até batizar a localidade inteira.

Do povoado ao município
O reconhecimento oficial veio em 23 de julho de 1880, com a criação do Distrito de Paz do Santíssimo Coração de Jesus de Caculé, vinculado a Caetité. Décadas depois, a tradição oral virou lei: em 14 de agosto de 1919, pela Lei Estadual nº 1.365, Caculé foi desmembrado de Caetité e elevado à categoria de município, com instalação oficial em 1º de janeiro de 1920. Em 1938, o povoado foi elevado à condição de cidade, consolidando-se como sede administrativa e política.
O peso da escravidão e o legado de Manoel
A trajetória de Manoel Caculé revela mais do que a origem de um município: ela denuncia as contradições do sistema escravista. A escravidão no Brasil foi uma das mais longas e violentas do mundo ocidental. Por mais de três séculos, milhões de africanos e seus descendentes foram tratados como propriedade, privados de dignidade, famílias e futuro.

O caso de Manoel mostra tanto a brutalidade quanto a resiliência. Brutalidade porque um homem teve de “desaparecer” para conquistar a liberdade, vivendo à margem, como se fosse um morto em vida. Resiliência porque, contra todas as probabilidades, ele transformou a fuga em autonomia, a autonomia em trabalho, e o trabalho em alforria.

Sua história expõe uma ferida ainda aberta: a da invisibilidade histórica dos anônimos que construíram o Brasil sob o jugo da escravidão. Se o nome de Manoel hoje batiza uma cidade, quantos outros permaneceram sem memória, apagados pela violência do cativeiro?
Identidade e resistência
Mais do que topônimo, Caculé é símbolo de resistência individual que se transformou em herança coletiva. A memória do escravizado que ousou desafiar o destino imposto e fincar raízes numa lagoa do sertão permanece inscrita na geografia e na cultura local.

Em um Brasil que ainda luta para preservar as histórias de seus anônimos, lembrar Manoel Caculé é recontar o nascimento de uma cidade sob o signo da liberdade. Antes das leis e decretos, havia um homem, um rancho de taipa e uma lagoa. Foi ali que começou Caculé.
Agradeço o ex-prefeito, Beto Maradona, que me encaminhou imagens da sua justa homenagem de Manoel Caculé, o ex-escravizado, que virou nome de cidade e precisa ter a sua história reconhecida por toda Bahia e o Brasil.
Josias Gomes Deputado Federal do PT/Bahia Vice-líder do PT na Câmara
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