
A senha era Jorge Amado
Há cenas que, de tão improváveis, parecem escritas. Na palestra que deu na sede da Federação das Indústrias da Bahia, o jornalista Jamil Chade narrou uma delas: parado por um policial numa fronteira da ex-União Soviética, ouviu a proposta incomum — “Estou pensando em um escritor brasileiro; se você acertar, entra.” A primeira reação foi recorrer ao óbvio contemporâneo: Paulo Coelho. Mas o jornalismo pede memória. E a memória puxou a história: por décadas, Jorge Amado foi o rosto literário do Brasil traduzido nos países da ex-União das Repúblicas Socialista Soviética, presença em prateleiras, clubes de leitura, bibliotecas e salas de aula. A aposta mudou. “Jorge Amado”, disse Jamil. O guarda sorriu, abriu passagem e carimbou um Brasil inteiro naquele passaporte.
O caso tem graça, tem tensão — e tem substância. A cultura faz às vezes de documento oficial. Em certos lugares do mundo, o Brasil chega antes pelo que canta e escreve. Naquele posto de fronteira, o que valia não era um tratado, mas uma lembrança de leitura: personagens que andam em Ilhéus e Salvador, cacau, cais, coronéis, quitutes, a malemolência que não é estereótipo, mas literatura que humaniza. Jorge Amado fez da Bahia uma república do imaginário global; e, quando Jamil afirma que “os baianos são o Brasil no exterior”, ele está dizendo que a Bahia tem sido, muitas vezes, o nosso passaporte afetivo.
Essa história também revela outra camada: identidade e reputação são ativos estratégicos. A indústria sabe disso — e por isso é simbólico que o relato tenha sido feito na FIEB. Exportamos grãos, minérios, energia. Mas exportamos, sobretudo, sentido. Quando a cultura baiana circula pelo mundo, ela não só abre portas para artistas e escritores: ela abre portas para negócios, turismo, confiança. Uma marca-país não nasce de slogans; nasce de narrativas consistentes e reconhecíveis.
Há claro uma lição de política pública. A Bahia, com seus programas de fomento à leitura e ao livro, renova a base dessa diplomacia silenciosa. Cada feira literária, cada biblioteca viva, cada tradução apoiada é infraestrutura de reputação. É preparar o próximo “carimbo” que um leitor estrangeiro dará ao pensar no Brasil. Jorge Amado não caiu do céu: ele foi fruto de ecossistemas criativos, de editoras, tradutores, políticas culturais e, sobretudo, de uma Bahia que se reconhece e se projeta.
A anedota do fronteiriço termina com um gesto simples: a cancela erguida. Mas ela sugere um horizonte: num mundo de muros, a cultura é ponte. E, quando a ponte tem sotaque de mar e dendê, quando traz nomes que o mundo pronuncia com familiaridade, quando carrega a galhardia de Ilhéus e o colo de Salvador, a travessia fica mais fácil. A senha era Jorge Amado. E continua sendo: Bahia.
Josias Gomes
Deputado Federal (PT/Bahia)
Vice-líder do PT na Câmara
Se concorda, compartilhe!
Deixe um comentário