Memórias do Engenho Estiva: Uma Infância Moldada pelo Coletivo
Com a colaboração de meu irmão Zuzu, registro as passagens de nossa infância – e, no caso dele, também da pré-adolescência – vividas nos anos 1950, no Engenho Estiva. Foi ali, entre os canaviais e as histórias do dia a dia, que nossa identidade foi forjada, não apenas pelos laços familiares, mas pela convivência com os trabalhadores rurais, cuja força e humanidade marcaram profundamente nossas vidas.
O Engenho Estiva: Mais que um Lugar, um Mundo
O Engenho Estiva era um universo inteiro dentro do meu pequeno mundo infantil. A casa grande, ainda de pé, reinava sobre o cenário, ladeada por um secador de café que também servia de abrigo para os cachorros Vencedor e Baleia. Ao fundo, um pomar que parecia um pedacinho do paraíso: mangas, jacas, sapotis, abiús, entre outras frutas que, ainda hoje, despertam saudades.
Nos anos 1950, o engenho pulsava de vida. O brilho intenso do sol sobre os canaviais, o barulho distante da locomotiva nos trilhos e o murmúrio do rio compunham a trilha sonora da nossa infância. Era nesse cenário que eu e Zuzu brincávamos e explorávamos, acreditando que aquele mundo era eterno.
Nosso pai, a quem chamávamos de “Gino” – um apelido adotado até pelos outros moradores do engenho –, era o administrador do lugar. Ele era mais que um chefe: era um líder respeitado, quase uma figura mítica. Para mim, era um herói silencioso, alguém que carregava o engenho inteiro sobre os ombros. Aos olhos dos outros, ele era juiz, mediador e prefeito, sempre firme, mas com um senso de humanidade que conquistava a todos.
As Pessoas que Moldaram Nossa História
Mais do que o engenho, foram as pessoas de Estiva que nos ensinaram lições valiosas. Elas eram os personagens centrais de uma história que se desenrolava todos os dias.
Dona Zulmira, por exemplo, sentava-se no terraço da casa grande, debulhando milho ao lado de sua filha pequena. Simpática e acolhedora, sua conversa parecia nunca acabar. A família Simão – José, Lourdes, Carmelita, Iracema e Noêmia – vivia em um sítio que parecia mágico, com suas jaqueiras, mangueiras e um pé de oiti cujo sabor doce nunca mais encontrei na vida.
Entre os trabalhadores do engenho, Zé Martins, o cabo responsável pelas tarefas, era uma figura imponente, sempre com sua vara longa, chamada “braça”. Meu tio José Gomes liderava com calma e respeito, enquanto Zé Cícero era o faz-tudo: limpava canaviais, carregava mensagens e, nas horas vagas, contava histórias para Zuzu. Ele também tinha a missão de buscar Zuzu após as aulas em Amaraji, montado no burro de meu pai. Sua esposa, dona Nina, foi como uma terceira mãe para Zuzu, cuidando dele com carinho quando nossa mãe precisou viajar para o engenho Serra Nova para o meu nascimento.
Dona Conceição, esposa do barraqueiro seu Djalma, foi nossa primeira professora. Firme e dedicada, foi ela quem nos ensinou a escrever. Também negociou a ida de Zuzu para a escola em Amaraji, enquanto eu permaneci em Estiva até nossa mudança para o Engenho Garra.
Gordinho: A Alma de Estiva
Entre todos, Gordinho era especial. Jovem, alegre e cheio de vida, ele era o cambiteiro do engenho, famoso por seu canto alto e animado, que transformava as manhãs:
“O nome de Jesus é maravilhoso!
É maravilhoso pra mim!”
Zuzu, ainda menino, sonhava em ser como ele, montado em um burro e cantando para o mundo. Mas o destino foi cruel. Em um dia que deveria ser comum, Gordinho saiu para pescar de loca no rio Estiva e nunca voltou. Uma barreira desabou, tirando sua vida e deixando o engenho mergulhado em tristeza. Seu funeral foi um marco: parecia que o coração de Estiva havia parado.
Uma Escola de Vida
Deixamos o Engenho Estiva quando meu pai foi transferido, mas as lições aprendidas lá nunca nos deixaram. Os trabalhadores rurais, com suas histórias, esforços e solidariedade, foram mestres silenciosos. Foi com eles que aprendi a respeitar o trabalho coletivo e a valorizar a força das comunidades.
Hoje, o engenho é um assentamento de reforma agrária do MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Saber que aquelas terras agora pertencem a quem sempre as cultivou enche meu coração de esperança.
Estiva não foi apenas um lugar; foi a base de nossa formação. O riacho que corria por lá ainda ecoa em mim, lembrando que o passado, com todas as suas vozes e paisagens, continua vivo na memória e no caráter de quem viveu aquela época.
Pintura do card: Ana Queila
Josias Gomes – Deputado Federal do PT/Bahia
Vice-líder do PT na Câmara
Deixe um comentário