
Personalidades Históricas da Bahia: A sombra dos Garcia D’Ávila
A sombra dos Garcia D’Ávila
A cidade de Dias d’Ávila, na Região Metropolitana de Salvador, carrega no nome a marca de um passado colonial. O homenageado é Francisco Dias d’Ávila, neto de Garcia d’Ávila, fundador da Casa da Torre de Tatuapara, no litoral norte da Bahia.
No século XVII, Francisco expandiu os domínios da família pelos sertões, do vale do Itapicuru às margens do São Francisco, avançando até Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí. Seu poder cresceu à custa da expulsão de povos indígenas e da criação de gado em imensas sesmarias. Frei Martinho de Nantes registrou as violências das campanhas, como a sangrenta Batalha do Salitre, em 1676.
Em 1928, a antiga Feira Velha de Capuame recebeu oficialmente o nome de Dias d’Ávila, eternizando a memória de um colonizador que marcou a história do Nordeste com terras, bois e sangue.
Este texto faz parte da série em que percorro cidades baianas batizadas com nomes de figuras públicas que, de algum modo, deixaram suas marcas na formação do estado. Hoje a parada é em Dias D’Ávila, município que integra a região metropolitana de Salvador, conhecido pela industrialização e pelo crescimento urbano acelerado das últimas décadas.
Mas, por trás desse nome, paira uma memória mais antiga, que remonta à própria gênese da colonização baiana: a saga dos Garcia D’Ávila, uma das famílias mais poderosas do Brasil colonial. É impossível caminhar por essa história sem carregar o peso da crítica, porque junto do prestígio e da riqueza está também a violência e a exploração que marcaram sua trajetória.
A chegada de Garcia D’Ávila
O primeiro da linhagem foi Garcia D’Ávila I, fidalgo português que chegou à Bahia em meados do século XVI. Veio como almoxarife da Casa da Bahia, a serviço de Tomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil. Sua função, aparentemente burocrática, abriu-lhe portas e contatos. Logo, como recompensa por serviços prestados à Coroa, recebeu vastas sesmarias de terras no litoral norte, no alto de uma colina em Tatuapara, área estratégica que vigiava o mar e os caminhos do interior. Ali ergueu uma fortaleza de pedra e cal que viria a ser conhecida como a Casa da Torre de Garcia D’Ávila — símbolo de poder e ponto de partida para um império privado que se estenderia por séculos.
O latifúndio nascendo em Tatuapara
Daquela base, o projeto cresceu com ambição quase sem limites. A Casa da Torre acumulou terras que se estendiam muito além da vista, alcançando o sertão nordestino e avançando sobre áreas que pertenciam a povos originários. O latifúndio não nasceu apenas da vontade de criar gado ou plantar para exportação: nasceu do sangue derramado de indígenas massacrados e escravizados, nasceu da importação forçada de africanos que sustentaram com trabalho compulsório a riqueza da família.
O modelo implantado por Garcia D’Ávila, misto de empresa e feudo, tornou-se um dos alicerces da estrutura agrária brasileira: concentração de terras, exploração da mão de obra escravizada e acumulação de poder político em mãos privadas.
A marcha para o sertão
Do litoral de Tatuapara, os D’Ávila lançaram bandeiras e expedições que avançaram sertão adentro. O gado, introduzido como riqueza complementar ao açúcar, abriu caminho para a ocupação das caatingas e chapadas. As tropas da Casa da Torre seguiam rios e trilhas, montavam currais e marcavam território à ponta de espada. Assim, no século XVII, já controlavam grandes extensões da Bahia e do sertão pernambucano.
O movimento não parou aí: ao longo dos séculos XVII e XVIII, seus domínios alcançaram o Piauí, onde as fazendas de gado sustentaram o abastecimento de carne e couro; avançaram pelo Maranhão, integrando-se às rotas comerciais da região; e chegaram até o interior de Goiás, em plena expansão da fronteira colonial. Era como se um poder paralelo ao da Coroa se consolidasse, com a Casa da Torre funcionando como Estado dentro do Estado, decidindo sobre vidas, terras e caminhos.
A Batalha do Salitre
A chamada Batalha do Salitre, ocorrida em 1676, foi um dos episódios mais violentos da expansão da Casa da Torre de Garcia D’Ávila para o sertão nordestino.
O contexto
No século XVII, os descendentes de Garcia d’Ávila, sobretudo Francisco Dias d’Ávila, buscavam ampliar seus domínios de criação de gado pelos sertões do São Francisco, Piauí, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte. Essa expansão se deu à custa da expropriação de terras indígenas e da violência direta contra povos originários.
O conflito
Em 1676, tropas ligadas à Casa da Torre, apoiadas por autoridades coloniais, atacaram populações indígenas que resistiam na região conhecida como Salitre (próxima ao Rio São Francisco, na Bahia). A batalha foi um verdadeiro massacre, símbolo da política de “guerra justa” e de extermínio que marcou a penetração colonial no interior.
A denúncia de Frei Martinho de Nantes
O episódio foi registrado e denunciado pelo missionário capuchinho Frei Martinho de Nantes, que atuava como observador e crítico da violência contra os indígenas. Ele narra a crueldade das expedições: aldeias incendiadas, indígenas mortos em grande número e outros levados como escravizados. O testemunho de Nantes é fundamental porque contrapõe a narrativa oficial da época, que justificava a guerra como forma de “civilização” e expansão econômica.
Significado histórico
A Batalha do Salitre é lembrada como um marco da brutalidade da colonização no sertão. Ela demonstra como os grandes senhores da Casa da Torre inauguraram, no Brasil, um modelo de latifúndio baseado na violência, na escravização e na expulsão dos povos nativos. Esse processo, denunciado por missionários como Martinho de Nantes, abriu caminho para a concentração fundiária que moldou a história agrária do país até hoje.
O peso da herança
Por isso, lembrar Dias D’Ávila não é apenas lembrar o ministro do Império, nem a cidade que hoje abriga fábricas e bairros modernos. É também evocar a longa sombra dos Garcia D’Ávila, que, a partir de Tatuapara, ergueram um domínio construído com violência e opressão. Uma história que precisa ser contada em sua inteireza, sem a maquiagem heroica que tantas vezes encobriu os rastros de dor.
A Bahia que herdamos traz em si esse contraste: ao lado da riqueza cultural e da beleza do povo, a marca profunda das desigualdades originadas no tempo em que os D’Ávila transformaram terras e gentes em mercadoria. E é por isso que recontar essa trajetória, hoje, é mais que um exercício de memória: é um ato de justiça histórica.
Josias Gomes Deputado Federal do PT/Bahia
Vice-líder do PT na Câmara
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